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A economia e o melhoramento social: a agenda de reformas de Alfred Marshall

Resumos

Este artigo visa a investigar alguns aspectos da filosofia social e econômica de Alfred Marshall. Argumenta-se que o combate à pobreza mobilizou sobremaneira o autor por ele considerá-la um mal que, além de infligir intenso sofrimento aos pobres, era responsável por boa parte de sua degradação física, moral e intelectual. Resgatar os homens, mulheres e crianças da miséria seria, assim, um pré-requisito para o melhoramento humano e social. Analisa-se, no artigo, a extensa agenda de reformas defendida por Marshall, que incluía o combate direto à pobreza e à indigência, mas também políticas educacionais, sanitárias, habitacionais, e de planejamento urbano. Argumenta-se que, apesar de, à primeira vista, parecerem uma miscelânea de medidas, analisadas em seu conjunto essas propostas se complementavam e visavam basicamente a romper o "círculo vicioso" da pobreza e, com isso, melhorar a vida e o caráter dos homens.

Alfred Marshall; filosofia social; pobreza; reforma social; melhoramento humano


This paper aims to investigate some aspects of Marshall's social and economic philosophy. It is argued that he made great effort to extinguish poverty, for he considered it an evil that besides provoking intense distress to the poor, was responsible for their physical, moral and intellectual degradation. To rescue men, women and children from misery would be, for him, a pre-condition to human and social betterment. The paper analyses Marshall's reform agenda that included the direct combat of poverty and indigence, but also educational, sanitary, and urban planning policies. Despite the appearance of miscellaneous measures, these reforms, when viewed as a whole, complemented each other and aimed basically at breaking the 'vicious circle' of poverty and, by these means, at ameliorating human character and human life.

Alfred Marshall; social philosophy; poverty; social reform; human betterment


1_Introdução(1 1 Este artigo baseou-se no cap. 5 da minha tese de livre-docência defendida na FEA-USP, em 2012, e foi escrito como parte das minhas obrigações como bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Uma versão preliminar do trabalho foi apresentada no III Ciclo de Seminários de Metodologia e História do Pensamento Econômico do Cedeplar/UFMG. O trabalho pôde contar, assim, com comentários feitos pela banca de livre-docência (composta dos professores Ana Maria Bianchi, Maurício Coutinho, Hugo Cerqueira, Leda Paulani e Ramón Fernandez), com observações feitas pelos participantes do Seminário do Cedeplar, e com as sugestões apresentadas pelo parecerista anônimo da revista - agradeço a todos os envolvidos. Por fim, agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro concedido. )

Assim como vários outros economistas políticos que o antecederam, Alfred Marshall era um pensador bastante preocupado em apresentar soluções para os principais problemas sociais que existiam na sua época. Foi desconforto que sentia em relação à situação de grande pobreza e desigualdade vigentes que o levou à Economia Política,2 2 Marshall relata o seu caminho para a Economia da seguinte forma: "Da metafísica eu fui para a ética, e achei que justificar a sociedade existente não era fácil. Um amigo, que tinha lido muito sobre que hoje se denomina Ciências Morais, constantemente dizia: 'Ah! Se você entendesse de Economia Política você não diria isso'. Então eu li os Princípios de Economia Política de Mill, e fiquei muito excitado com o livro. Eu tinha dúvidas sobre a adequação das desigualdades de oportunidade, mais do que das desigualdades nos bens materiais. Então, nas minhas férias eu visitei os quarteirões mais pobres de várias cidades e andei em uma rua após a outra, olhando para as caras das pessoas mais pobres. Em seguida, eu resolvi fazer o estudo mais completo possível de Economia Política" (Marshall, apud Keynes, [1925], 1966, p. 10). Depois de descartar outros possíveis candidatos, Groenewegen (1995a, p. 144) especula que este amigo que levou Marshall à Economia Política foi, provavelmente, Henry Sidwick. e boa parte do seu trabalho teve como motivação melhorar as condições de vida e, por meio disso, o caráter de seus contemporâneos. A esse respeito, em 1893, o próprio Marshall declara ao Royal Commission on the Aged Poor: "Eu me devotei nos últimos 25 anos ao problema da pobreza e [...] muito pouco do meu trabalho foi devotado a qualquer investigação que não tenha relação com isso (Marshall, apud Hutchison, 1969, p. 247HUTCHISON, T. W. Economists and economic policy in Britain after 1870. In: History of Political Economy HOPE, n. 2, p. 231-255, 1969.).

A imagem que John Maynard Keynes apresenta de Marshall na sua famosa biografia sobre seu mestre faz crer que a afirmação do autor não foi apenas retórica e que a questão do melhoramento social de fato mobilizou grande parcela de seus esforços. Keynes afirma:

[...] Marshall era ansioso demais por fazer o bem. Ele tinha uma tendência a sub-valorizar aquelas partes intelectuais do assunto que não fossem diretamente relacionadas com o bem estar da humanidade, ou com as condições das classes trabalhadoras ou coisas do gênero [...] e a sentir que quando ele estava investigando estas, ele não estava se ocupando do Elevado [...] (Keynes, [ 1925 ], 1966, p. 37, ênfase no originalKEYNES, J. M. [1925]; (1966). Alfred Marshall, 1842-1924. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A.C. Pigou, New York, Augustus M. Kelley.).3 3 Podemos notar uma ponta de irritação nas observações de Keynes, uma vez que ele considerava as contribuições de Marshall enquanto cientista muito mais valiosas do que aquelas enquanto pregador ou pastor dos homens (Keynes, [1925], 1966, p. 12), e via com frustração que "[...] os olhos penetrantes e as asas potentes de uma águia eram freqüentemente chamados de volta a terra para fazer o papel de moralizador"(idem).

Arthur Cecil Pigou, sucessor de Marshall na cadeira de Economia Política de Cambridge, também atesta que seu mentor partia da "[...] firme visão de que a ciência econômica é acima de tudo valiosa, não como ginástica intelectual, nem mesmo como um meio de se chegar à verdade como um fim e si mesmo, mas como uma auxiliar da ética e uma serva da prática" (Pigou, apud Jensen,[1990], 1996, p. 143JENSEN, H. E. [1990] (1996) Value premises in the economic thought of Alfred Marshall. In: Alfred Marshall - Critical Assessments Second Series. Vol. VII. Edited by John Cunninham Wood. Routledge, London and New York.).

No entanto, apesar da preeminência dessas questões de filosofia social no projeto intelectual de Marshall, o lado "normativo" das suas contribuições tem sido relativamente negligenciado na literatura - toda ênfase sendo dada aquelas feitas no âmbito da teoria econômica.4 4 Podemos citar Whitaker (1977), Jensen (1987), Bowman (2004) e Reisman (1987 & 1990), Groenewegen (1995a) como exemplos recentes dessa parca bibliografia que analisa a filosofia social de Marshall. Este artigo pretende analisar as propostas de reforma sociais encampadas por Marshall, somando-se, assim, à escassa literatura que aborda essa esfera normativa do seu pensamento econômico.

Argumenta-se que a preocupação em eliminar a pobreza vigente em sua época presta unidade à agenda de reformas apresentada por Marshall aos seus conterrâneos. Ele defende a adoção de uma série de medidas pontuais - políticas de combate emergencial à indigência e pobreza, políticas educacionais, de fortalecimento da família, de habitação, de planejamento urbano, entre outras - que podem ser vistas como peças importantes na sua meta maior de romper com o "círculo vicioso" da pobreza e, por meio disso, melhorar física, intelectual e moralmente os homens de sua sociedade.

Com esse objetivo, o artigo está estruturado da seguinte maneira: Na seção 2, será analisado o diagnóstico de Marshall sobre as causas e consequências da pobreza e sobre a importância da Economia no combate a esse mal. Na seção 3, será discutida a agenda de reformas que ele propõe para a superação desse problema e para a evolução em direção a uma sociedade melhor. Por fim, na seção 4, serão tecidas algumas considerações finais.

2_Pobreza, degradação humana e progresso social

A pobreza mobilizava Marshall não apenas pelo sofrimento que a falta de recursos materiais infligia a uma massa relativamente grande de pessoas em sua sociedade, mas também pelas consequências que ele acreditava que tal privação teria sobre o desenvolvimento das faculdades humanas. A ausência de meios materiais adequados - o que implicava falta de acesso a moradias saudáveis, carência de educação, de parques, de ar limpo e de lazer - seria central na explicação da condição degradada em que se encontravam os pobres e os indigentes de sua sociedade.

No entender do autor, a existência de "[...] tantas caras fatigadas e mentes pouco desenvolvidas [...]" (Marshall, [1885], 1966, p. 172MARSHALL, A. [1885] (1966). The present position of Economics. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.) decorreria da falta de riqueza e de sua má distribuição. Para ele, se as "[...] doentias condições físicas mentais e morais [dos pobres] são em parte devidas a outras causas alheias à pobreza, esta é, sem dúvida, a causa principal" (Marshall, [1920], 1982, p. 2MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.)5 5 Marshall aponta: "[...] as condições que circundam a pobreza extrema, especialmente em lugares densamente ocupados, tendem a amortecer as faculdades superiores [...]" (Marshall, [1920], 1982, p. 2). E, ainda jovem, assumiu como sua missão melhorar as condições de vida destes indivíduos e, com isso, aprimora-los como pessoas:

Por volta da época em que eu resolvi pela primeira vez estudar tão profundamente quanto possível a Economia Política [...]eu vi numa vitrine um pequeno quadro em óleo [de um homem pobre com cara lúgubre e melancólica] e comprei-o por alguns shillings. Eu o coloquei sobre o apoio da chaminé no meu quarto na universidade e, daí em diante, o chamei de meu santo padroeiro e me devotei em tentar achar uma forma de tornar, homens como aquele, pessoas adequadas aos céus [...] (Marshall, apud Keynes, [1925], 1966, p. 37,38, ênfase adicionadaKEYNES, J. M. [1925]; (1966). Alfred Marshall, 1842-1924. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A.C. Pigou, New York, Augustus M. Kelley.).

Assim, apesar de ter-se voltado à Economia, o que Marshall visava de fato era promover muito mais do que "mero" aumento de riqueza.6 6 Como coloca Caldari, para Marshall,"[n]ão é suficiente para o homem aumentar o seu comando sobre a Natureza; é também necessário desenvolver as faculdades que lhe permitam usar corretamente esse comando[...]." (Caldari, 2004, p. 524). Segundo Marshall, "[...] sempre houve um substrato de concordância de que o bem social se encontra principalmente no exercício saudável das faculdades e no seu desenvolvimento, que rende felicidade sem tédio [without pall] por que mantém o auto-respeito e é mantida pela esperança" (Marshall [1897], 1966, p. 310). Um indício de que o progresso que interessava a ele não se limitava ao progresso puramente material, é a distinção que ele faz entre aumento de padrão de vida (standard of life) e padrão de conforto (standard of comfort). Ele não se satisfazia com meras melhorias materiais que não redundassem em aprimoramentos dos próprios indivíduos. O verdadeiro progresso - que ele associa a melhorias no padrão de vida - envolveria fortalecimento de caráter, e melhorias nos costumes, nos desejos e nos gastos de consumo: "[...] uma elevação do padrão implica um aumento na inteligência, energia e auto-respeito; levando a mais cuidado e critério no gasto, e a evitar comidas e bebidas que satisfazem o apetite, mas não fornecem força, e modos de vida que são moralmente e fisicamente insalubres [unwholesome]." (Marshall, [1920], 1982, p. 574).Para mais sobre essa diferença entre "padrão de conforto" e "padrão de vida", ver Aspers (1999, p. 657), Chasse (1984, p. 393, 403) e Whitaker (1987, p. 353). O tipo de progresso almejado envolveria muitas outras dimensões além desta: "[i]nclui desenvolvimento das faculdades morais e mentais, mesmo quando seu exercício não rende ganhos materiais [...]" (Marshall, apud Caldari, 2004, p. 521CALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.). No entanto, certamente, Marshall considerava que uma melhoria nas condições materiais da população carente seria uma condição sine qua non para que esse progresso pudesse ocorrer.7 7 "Progresso humano verdadeiro é principalmente uma melhora na capacidade de sentir e de pensar, mas não pode ser mantida sem energia e empreendimento vigoroso. Um certo nível mínimo de meios é necessário para o bemestar humano, e algo um pouco acima deste mínimo é necessário para uma classe de vida elevada [high class life]" (Marshall, apud Groenewegen, 1995b, p. 145, ênfase adicionada). Para uma exposição da visão de progresso em Marshall, ver Caldari (2004), e, para uma versão mais sucinta, ver Caldari (2006). Para ele,"[...] a principal importância da riqueza material descansa no fato de que, quando usada de forma sábia, ela aumenta a saúde e a força física, mental e moral da raça humana" (Marshall, [1920], 1982, p. 161MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).8 8 Como aponta Viner: "[...] O progresso que ele buscava [...] não era meramente uma questão de mais bens, mas de acesso a, e gosto por, mais lazer, uma vida mais refinada para todas as pessoas, de forma que até os carregadores de varas [hodcarriers] pudessem ser gentlemens [...]" (Viner, 1941, p. 227)

Justamente por traçar forte vinculação entre a condição de pobreza e a degeneração humana vigente, a Economia assumiu papel central na sua filosofia social. Para Marshall, por ser uma investigação sobre as causas da pobreza esta ciência é, simultaneamente,"[...] o estudo da degeneração de uma grande parte da humanidade" (Marshall, [1920], 1982, p. 2MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). E, ao elucidar os determinantes da pobreza, ela contribuiria não somente para a melhoria das condições materiais vigentes, mas seria igualmente instrumental na missão que Marshall encampou de aprimorar os seus contemporâneos: "Com casas mais espaçosas e comida melhor, com menos trabalho duro e mais lazer, a grande massa da nossa população teria o poder de viver uma vida bem diferente da que leva agora, uma vida bem mais elevada e bem mais nobre" (Marshall, [1885], 1966, p. 172, ênfase adicionadaMARSHALL, A. [1885] (1966). The present position of Economics. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

É nesse contexto mais amplo de preocupação com o melhoramento das condições materiais, mas também morais e intelectuais, dos homens que devem ser entendidos os posicionamentos de Marshall no que concerne à filosofia econômica e social. As suas propostas em relação ao auxílio aos pobres, à pensão para os velhos, à implantação de políticas públicas nas esferas da saúde, habitação e educação, entre outras, direta ou indiretamente visavam a romper com o círculo perverso da pobreza, que estaria causando grande sofrimento e impedindo o desenvolvimento de uma grande parte da população.

2.1_O "círculo vicioso" da pobreza: a situação dos trabalhadores não qualificados e do Residuum

As condições degradadas de duas categorias de pessoas preocupavam particularmente Marshall: aquelas vividas pelos trabalhadores não qualificados, e por um grupo denominado de Residuum - indivíduos que não conseguiam (ou não queriam) se inserir no sistema capitalista de forma a obter, pelos próprios meios, o seu sustento e o de sua família.

O cenário dos trabalhadores não qualificados era considerado "sombrio" (Marshall, 1873, p. 105MARSHALL, A. [1873]. The future of the working classes. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. C. Pigou, New York, Augustus M. Kelley.). Com um nível qualificação bastante baixo, esse grupo era incapaz de executar qualquer tipo de tarefa além daquelas repetitivas, monótonas, pesadas e que exigiam pouco discernimento ou responsabilidade9 9 Marshall ressalta, no entanto, que "[...] o termo 'trabalhador não qualificado' está constantemente mudando de significado" (Marshall, [1920], 1982, p. 171). Ele aponta que mesmo o trabalhador não qualificado da Inglaterra era capaz de desempenhar muitas funções que trabalhadores de outros países não eram. Existiriam raças mais atrasadas que "[...] são incapazes de desempenharem qualquer tipo de trabalho por qualquer período de tempo mais longo; e mesmo o mais simples dos trabalhos que consideramos não-qualificados é trabalho qualificado para eles; pois eles não têm o requisito de assiduidade, que só podem adquirir depois de longo treinamento" (idem). As atividades por eles exercidas atuavam no sentido de exaurir praticamente todas as suas energias, restando pouca ou nenhuma ocasião para que se aprimorassem10 10 As atividades econômicas exercidas pelos homens eram, para Marshall, um dos elementos fundamentais na formação do seu caráter (Marshall, [1920] (1982), p. 1). Elas poderiam atuar no sentido de aprimorá-lo ou, como seria no entender do Marshall o caso dos trabalhadores não qualificados, degradá-lo. :

[...] existe um vasto número de pessoas tantonas cidades como no campo [...] cuja educação é interrompida prematuramente de forma a que possam trabalhar em troca de um salário; que daí em diante se engaja em longas horas de trabalho exaustivo com corpos nutridos de forma imperfeita, e que não têm, portanto, qualquer chance de desenvolver as suas faculdades mentais mais elevadas [...] (Marshall, [1920], 1982, p. 2MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).11 11 Ainda se referindo à realidade dessas pessoas, Marshall afirma na mesma direção:"[...] Sobre-carregadas de trabalho [overworked] e sem educação suficiente [undertaught], exaustas e oprimidas, sem quietude e sem lazer, elas não têm qualquer chance de aproveitarem ao máximo as suas faculdades mentais" (Marshall, [1920], 1982, p. 2). Além de degradar física e intelectualmente o homem, esse tipo de atividade acabaria por perverter também, segundo Marshall, os valores morais do trabalhador, ao fazer com que procurasse divertimentos fáceis e pouco enobrecedores (Marshall, 1873, p. 107). "Descanso é tão essencial para o crescimento de uma população vigorosa quanto os quesitos materiais como comida, vestimenta, etc. Sobre-trabalho de qualquer forma reduz a vitalidade; enquanto a ansiedade, preocupação e esforço mental excessivo têm uma influência fatal em minar a constituição, em prejudicar a fertilidade e em diminuir o vigor da raça" (Marshall, [1920], 1982, p. 164).

Para ele, o termo "classe trabalhadora", quando aplicado ao trabalhador não qualificado, sugeriria uma realidade lúgubre na qual, ao invés de o homem ser fortalecido e completado por seu trabalho, ele tem a sua vida interna e as suas possibilidades de desenvolvimento massacradas por ele (Marshall, 1873, p. 108MARSHALL, A. [1873]. The future of the working classes. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. C. Pigou, New York, Augustus M. Kelley.).12 12 Marshall (1873) contrapõe a esse tipo de trabalho mutilador e degradante, o trabalho de gentlemen, que teria a qualidade de enobrecer e desenvolver os homens. Esse tipo de trabalho forçaria o homem a utilizar todas as suas faculdades e seria exercido de forma a permitir o desfrute do descanso e de lazer, tão necessários ao desenvolvimento intelectual e moral. Neste texto, Marshall pinta em cores dramáticas a situação do trabalhador manual e sem qualificação que viveria justamente uma situação diametralmente oposta a esta. A sua ambição era que, com o progresso social, todos os trabalhadores viessem a exercer atividades de gentlemen.

A baixa escolaridade da população como um todo redundava, por um lado, em uma abundância de mão de obra sem qualificação e, por outro lado, em baixa eficiência do trabalho por ela exercido. Somados, esses elementos traduzir-se-iam em salários insuficientes para garantirem os meios de uma vida digna aos trabalhadores e a suas famílias.13 13 Como coloca Marshall: "[...] a grande lei da distribuição é que quanto mais útil for um fator de produção, e quanto mais escasso for, mais alta será a taxa à qual os seus serviços são pagos [...]" (Marshall, apud Herbert, 2003, p. 66). No caso, o trabalho, além de ser abundante, seria pouco útil à produção ao ser ineficiente. A consequência natural seria a baixa remuneração. Assim, além do trabalho exaustivo, essa classe de indivíduos tinha que suportar condições de vida muito precárias em termos de moradia, saúde, lazer e educação.

O mais grave era que, caso a sociedade não atuasse no sentido de modificá-la, tal situação poderia piorar. Isso pois, para Marshall, a demanda por trabalho não qualificado estaria se reduzindo secularmente com a paulatina aplicação de máquinas na execução das tarefas repetitivas e pesadas antes realizadas por trabalhadores manuais (Marshall, [1920], 1982, p. 212MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.) - com efeitos potencialmente muito perversos sobre os salários dessa categoria de trabalhadores.

Em relação ao Residuum, a condição geral de miséria era, no entender de Marshall, ainda mais alarmante. Essa seria uma categoria de pessoas que, por razões físicas, intelectuais ou morais, ou por alguma outra circunstância, não conseguiam garantir o seu sustento. Eram mendigos, idosos sem provisões, doentes, vagabundos, azarados, imprevidentes, desvalidos e desempregados que viviam à margem do capitalismo. Tal como acontecia com os trabalhadores sem qualificação, as condições de pobreza extrema na qual essa classe se encontrava representavam grande empecilho para o desenvolvimento das suas faculdades intelectuais e morais.14 14 A descrição de Marshall é bastante pessimista: "[a]queles que têm sido chamados de Residuum de nossas grandes cidades têm pouca oportunidade para a amizade; eles não conhecem nada a respeito da decência e da quietude, e pouco até sobre a unidade da vida familiar; e a religião frequentemente fracassa em alcançá-los" (Marshall, [1920], 1982, p. 2). Como aponta Reisman, o Residuum seria deixado para trás na escada do progresso e estaria preso no círculo vicioso que autoperpetua as privações (Reisman, 1987, p. 204).

O pior era que, na visão de Marshall, ao contrário do que ocorreria em muitas outras esferas da vida econômica e social, os problemas dessas duas classes de indivíduos não tenderiam a ser resolvidos espontaneamente pelo livre jogo do mercado. Pelo contrário, como mencionado, a própria condição de pobreza acabaria por reforçar e engendrar a mais pobreza: pobreza geraria baixa eficiência no trabalho que, por sua vez, resultaria em baixos salários e condições de vida inadequadas, o que impediria o desenvolvimento intelectual, moral e físico desses trabalhadores. E essa situação tenderia a ser transmitida para seus filhos, perpetuando, assim, através das gerações, a ineficiência, a pobreza e a degradação. "Quanto pior forem alimentadas as crianças de uma geração, menos elas ganharão quando crescerem, e menor será o seu poder de prover adequadamente as necessidades materiais de suas crianças; e assim por diante pelas gerações seguintes (Marshall, apud Caldari, 2004, p. 254CALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.).

E a questão não seria apenas de meios materiais, mas também de valores: por não terem tido acesso a uma atmosfera propícia ao desenvolvimento das suas faculdades, as crianças, ao crescerem, não veriam a necessidade e a importância desses elementos e não se esforçariam para prover uma situação mais favorável ao desenvolvimento para os seus descendentes (Jensen, [1990], 1996, p. 152JENSEN, H. E. [1990] (1996) Value premises in the economic thought of Alfred Marshall. In: Alfred Marshall - Critical Assessments Second Series. Vol. VII. Edited by John Cunninham Wood. Routledge, London and New York.).15 15 Como coloca Chasse: "As crianças do 'Residuum' sofreriam com a privação de seus pais; habilidades latentes iriam permanecer dormentes, e o 'Residuum' iria se perpetuar [...]." (Chasse, 1984, p. 399).

Para que ocorresse melhoria social considerável, seria necessário combater diretamente a pobreza e suas consequências, de forma a romper esse "círculo vicioso" no qual se encontravam presos os membros menos favorecidos da sociedade. Não é de se espantar, portanto, que grande parte das reformas sociais e econômicas defendidas por Marshall visava justamente a combater esse que era considerado o grande mal da sua sociedade e que estaria na base de inúmeros outros males.

3_A agenda de reformas de Marshall: estratégia de curto e longo prazos para romper o "círculo vicioso" da pobreza e degradação humana

Como a pobreza apresentava inúmeras causas e dimensões, para combatê-la Marshall propôs um arsenal bastante diversificado - e o Estado, apesar de não ser o único ator importante, certamente cumpria papel de protagonista.

É importante notar, entretanto, que as ideias de Marshall a respeito de mudança social não são apresentadas de forma organizada ou sistemática. A sua "agenda" de reformas precisa ser "construída" utilizando afirmações esparsas encontradas nas suas obras teóricas (Princípios e alguns textos acadêmicos), explicitadas em panfletos, artigos em jornais ou informações retiradas das suas participações em associações voluntárias ou em suas intervenções nas Comissões Parlamentares com as quais colaborou.16 16 Marshall contribuiu de várias formas como conselheiro do governo em inúmeros campos da economia. Dessas as que têm relação mais próxima com este artigo são a sua participação redigindo memorandos e respondendo às questões dos Comissários do Royal Comission on the Aged Poor, e como Comissário da Royal Labour Comission. Mas, além disso, aconselhou o governo no que tange à Depressão e Ciclos, Taxação, Trocas Internacionais, entre outros assuntos. Para um detalhado relato dessas experiências de Marshall como conselheiro do governo, ver Groenewegen (1995a, cap. 11).

Observando essa "agenda", nota-se que Marshall advogou um combate emergencial, direto e de curto prazo, à pobreza e à indigência; todavia, não se limitou a isso. Propôs, adicionalmente, políticas cujos frutos só seriam colhidos no longo prazo. Defendeu, por exemplo, investimentos pesados em educação; políticas que fortaleciam o papel da mulher na família e protegiam as crianças; ações públicas direcionadas à melhoria das condições de moradia; além de investimentos do Estado em planejamento urbano, parques e museus. Apesar de parecer, à primeira vista, uma miscelânea de políticas, é possível sustentar que todas elas visavam a atacar as causas e as consequências da degradação física, moral e intelectual da população mais carente e abrir para ela e para seus descendentes a possibilidade de uma vida materialmente mais confortável e moral, intelectual e esteticamente mais elevada.

Subjacente a várias dessas reformas, existia a concepção de que as condições gerais vivenciadas pelos trabalhadores afetavam diretamente a produtividade de seu trabalho. Na avaliação de Marshall, os trabalhadores não qualificados recebiam um salário insuficiente e, por conta disso, não tinham condições de vida e de moradia adequadas para serem trabalhadores produtivos. Acreditava, assim, que medidas que provocassem melhorias nas condições materiais e na educação (e, consequentemente, na saúde, na inteligência, na disposição e na esperança) desses trabalhadores acabariam por elevar mais do que proporcionalmente a produtividade do seu trabalho. Isso era importante, uma vez que faria com que melhores salários fossem pagos, o que permitiria que essas pessoas criassem seus filhos em condições mais favoráveis - tendo efeito cumulativo sobre produtividade, salários e condições de vida das gerações futuras.17 17 A esse respeito, Marshall diz: "Foi somente na última geração que um estudo cuidadoso começou a ser feito sobre os efeitos de altos salários no aumento da produtividade não só daqueles que os recebem, mas também de seus filhos e netos" (Marshall, apud Bowman, 2004, p. 506). E, como aponta Bowman, essa ideia causou impacto entre os economistas contemporâneos a Marshall:" De acordo com F.Y. Edgeworth, a teoria de Marshall sobre o efeito cumulativo de altos salários sobre a eficiência 'parecia quase uma revelação' para os economistas da época" (Bowman, 2004, p. 506). Desta forma, aumentos de salários ou transferências de renda poderiam ter o efeito benéfico de dar início a um "círculo virtuoso" que possibilitaria resgatar a população do estado de privação material, moral e mental em que se encontrava.18 18 É interessante notar, entretanto, como faz Chasse, que, para Marshall, "[...] o princípio da causação cumulativa poderia funcionar também para a desvantagem de trabalhadores perfeitamente capazes que, por conta de desvantagens nas negociações ou simplesmente por conta das forças de oferta e demanda, aceitam salários baixos demais para prover os meios necessários para a eficiência. Sem esses, sua eficiência como trabalhadores cairia e eventualmente cairia o seu salário normal. Sua eficiência como negociadores declinaria também. Como resultado haveria um declínio cumulativo sobre sua eficiência e sobre aquela de seus descendentes" (Chasse, 1984, p. 399). Essa situação coaduna bem com aquela descrita por Marshall no que concerne aos trabalhadores não qualificados de sua época.

Marshall chega a propor que a filantropia privada pagasse salários maiores do que a produtividade marginal, já que isso fortaleceria o homem e o tornaria mais produtivo no futuro - fazendo jus, então, ao salário. No entanto, como aponta Reisman, ele hesita em institucionalizar um salário mínimo por conta da sua conhecida aversão à polêmica, da falta de dados e de experiências bem-sucedidas, e por seu medo de que sindicatos forçassem salários mínimos altos demais (Reisman, 1987, p. 206REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.). Todavia, em princípio (ou no nível teórico), ele deu seu aval a essa medida:

Se [o salário mínimo] pudesse ser tornado efetivo seus benefícios seriam tão grandes que poderia ser alegremente aceito, apesar do temor de que levaria a indolência e a alguns outros abusos, e de que seria usado como força para pressionar por um padrão de salários rígido artificial (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 207REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.).19 19 Na avaliação do Reisman: "Qualquer que fossem suas visões sobre uma legislação sobre salário mínimo, Marshall era bastante a favor de ação governamental desse tipo - políticas que tinham como finalidade aumentar o salário médio das classes que recebiam salários baixos via o caminho indireto de mudança estrutural prévia" (Reisman, 1987, p. 207).

Aprovava também a aplicação um imposto de renda progressivo como forma de fazer uma transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres.20 20 Groenewegen relata que inicialmente Marshall era contra taxação redistributiva com alíquotas progressivas por achar que essas poderiam prejudicar o trabalho e a poupança, mas, posteriormente, muda de ideia e passa a considerar que "[...] tais taxas eram um instrumento útil de política social, especialmente se seus proventos fossem gastos de maneira satisfatória [...]" (Groenewegen, 1995a, p. 150). A respeito da posição de Marshall sobre imposto progressivo, ver também Bowman (2004, p. 504) e Reisman (2006, p. 497). Para ele,"[...] os ricos devem ser taxados muito mais pesadamente do que eles são, de forma a prover para os seus irmãos mais pobres os meios materiais para um desenvolvimento físico e mental" (Marshall [1889], 1966, p. 228, 229MARSHALL, A. [1889] (1966). Co-operatio. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).21 21 Marshall afirma: "[...] as classes pobres devem contribuir com percentagem menor de suas rendas do que as classes médias, e essas, novamente, com uma percentagem menor do que as classes mais ricas. Esse arranjo me parece eqüitativo no sentido mais amplo da palavra" (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 154). Marshall considerava que, além de pagar compulsoriamente imposto, os ricos tinham o dever moral de praticar a voluntariamente a filantropia. Os recursos assim arrecadados deveriam, então, ser utilizados para financiar uma série de políticas que visavam a substituir o círculo vicioso de pobreza, degradação e baixa produtividade, pelo efeito cumulativo benéfico de melhorias na condição de vida e educação sobre a eficiência do trabalho, sobre os salários e sobre o caráter humano.

3.1_Combatendo diretamente a pobreza: diferenciando pobres merecedores de pobres não merecedores

No curto prazo, resgatar os pobres da sua condição degradada significava, para Marshall, a adoção de ações de combate imediato e direto à pobreza. Nesse sentido, ele se posicionou a favor de fornecer auxílio aos pobres, apesar de se pronunciar de forma incisiva contra a velha Lei dos Pobres - que, no seu entender, ao fornecer ajuda de forma inadequada, teria aumentado a miséria e degradado física e moralmente parte da população.22 22 Marshall coloca: "Se pessoas não obtêm a ajuda quando elas realmente precisam, elas e suas crianças ficam aptas a se tornarem fracas em corpo e em caráter, e incapazes de contribuir significativamente para a produção material de riqueza; mas com certeza se tornarão muito mais degradadas se elas conseguirem com freqüência ajuda quando não precisam dela, e lentamente se acostumarem a se engajar para obtê-la" (Marshall, [1920], 1892, p. 186). A velha Lei dos Pobres teria sofrido deste último defeito e, para ele, a sua estupidez desastrosa "[...] foi talvez o perigo mais sério com o qual a Inglaterra jamais foi ameaçada [...]" (idem). Marshall afirma ainda que "[...] a irresponsabilidade bem intencionada da [velha] lei dos pobres fez ainda mais para reduzir a energia física e moral dos ingleses do que a irresponsabilidade desalmada [hard-hearted] da disciplina manufatureira [...]" (Marshall, [1920], 1982, p. 9). Ao tornar mais rígidas as condições de concessão de auxílio, a Nova Lei dos Pobres (1834) teria ido na direção correta; no entanto, Marshall considerava que essa se revelou desnecessariamente dura ao vetar qualquer forma de auxílio que não envolvesse a reclusão em casas de trabalho [outdoor relief].

Marshall via os perigos de conceder esse tipo de auxílio de forma indiscriminada - poderia levar a um rebaixamento dos salários e a um desestímulo ao trabalho, à poupança e à previdência - todavia, alinhou-se com a opinião daqueles que consideram que "[...] auxílio sem reclusão [out-relief], apesar de sujeito a abusos, é capaz de ter bons usos" (Marshall,1892a, p. 372MARSHALL, A. [1892a]. Poor Law reform. In: The Economic Journal, vol. 2, n. 5 p. 371-379.). Defendia que, quando concedida de forma seletiva e discriminada, auxílio sem reclusão em casas de trabalho [out-door relief] para desempregados, idosos e doentes, além de ser justo, não acarretaria esses problemas. Como aponta Groenewegen:

[...] Desde bastante jovem, Marshall tinha visões progressistas sobre políticas de prover auxílio fora das casas de trabalho [out-doorrelief] [...] para ajudar trabalhadores desempregados, e acima de tudo, aqueles destituídos na velhice e na doença, e prestou apoio cauteloso ao pagamento de pensões por idade (Groenewegen, 1995a, p. 150GROENEWEGEN, P. A Soaring Eagle: Alfred Marshall 1842-1924. Edward Elgar, Aldershot, 1995a.).23 23 No mesmo sentido, ver Keynes (1924, p. 630). Todavia a posição de Marshall sempre foi cautelosa, e ele fez questão de deixar isso claro: "Eu defendi apenas extensões 'cuidadosas, tentativas e lentas' do escopo do auxílio público, e assumi 'que homens com saúde [able bodied men] não deveriam, em circunstâncias normais, receber auxílio fora das casas de trabalho [out-relief ]'." (Marshall, 1892a, p. 373). Para um relato detalhado sobre as posições de Marshall em relação a essa questão, desde seus primeiros escritos sobre o assunto até a sua participação na Royal Comission on the Aged Poor, em 1893, ver Groenewegem (1995a, p. 353-360).

No que concerne a pensões por idade, Chasse (1984) afirma que Marshall apresentou um argumento social que as legitimava ao considerar os gastos que os velhos despenderam no treinamento de seus filhos como uma forma de investimento que envolveu um esforço de poupança e que permitiu o aumento da renda nacional. Deste modo, "[...] Marshall encontrou uma fundamentação para assistência estatal aos idosos" (Chasse, 1984, p. 396CHASSE, D. J. Marshall, the human agent and economic growth: Wants and activities revisited. In: History of Political Economy (HOPE), 16:3, p. 381-403, 1984.).

Como Marshall via a possibilidade de trabalhadores honestos perderem seus empregos e economias por conta de ciclos econômicos, ele julgava pertinente também a existência de frentes de trabalho (relief works). No entanto, nesse caso, alguns cuidados deveriam ser tomados para não incentivar a dependência.

O pagamento deve ser o suficiente para fazer frente às necessidades da vida, mas suficientemente abaixo dos salários dos trabalhadores não-qualificados nos negócios ordinários de forma a que as pessoas não irão se contentar em aceitá-lo por muito tempo, ao contrário, estarão sempre à procura deemprego em outro lugar (Marshall, apud Keynes, 1924, p. 630KEYNES, J. M. Bibliographical list of writings of Alfred Marshall. In: The Economic Journal, vol. 34, n. 136, p. 627-637, 1924.).

Respeitadas essas condições, Marshall afirma que não via, em princípio, "[...] nenhuma objeção econômica em deixar dinheiro público fluir livremente para frentes de trabalho [relief works] [...]" (Marshall, apud Keynes, 1924, p. 630KEYNES, J. M. Bibliographical list of writings of Alfred Marshall. In: The Economic Journal, vol. 34, n. 136, p. 627-637, 1924.). E, segundo Groenewegen, ele acreditava que "[...] a provisão de assistência fora das casas de trabalho [outdoor relief] era essencial para evitar a quebra de lares de 'trabalhadores honestos [...] por conta de um período de infortúnios e salvá-los das casas de trabalho'" (Groenewegen, 1995a, p. 355GROENEWEGEN, P. A Soaring Eagle: Alfred Marshall 1842-1924. Edward Elgar, Aldershot, 1995a.).

O fundamental, na hora de escolher que tipo de ajuda seria, para Marshall, era empreender uma distinção entre o que ele denomina "pobres merecedores" e "pobres não merecedores" - ou seja, separar o joio do trigo. Os "pobres merecedores" seriam aqueles que não podiam ser culpados por sua miséria - pessoas que, ao longo de sua vida, se esforçaram por poupar, trabalharam, foram previdentes, mas que, por razões alheias à sua vontade (desemprego, doença, idade, infortúnios diversos), se encontravam em situação precária. Já os "pobres os não merecedores" seriam aqueles cujo comportamento preguiçoso, displicente, irresponsável e imprevidente foi o responsável pela condição de desamparo em que se encontravam.24 24 Reisman (1987, p. 214) aponta alguns termos, pouco simpáticos, que Marshall utiliza ao referir-se a esses indivíduos: "os casos ruins" [bad cases]; "os depravados" [vicious], os "indignos" [unworthy], "os habitualmente indolentes e perdulários" [idle and profligate], "os inconsequentes" [reckless], "o homem que pode trabalhar, mas não trabalha", o "vagabundo convicto" [the resolute tramp].

Marshall criticava duramente a filosofia implícita na Lei dos Pobres de prestar auxílio apenas com base na indigência do solicitante, sem levar em conta o mérito de caráter envolvido em cada caso particular (Marshall, 1892b, p. 186MARSHALL, A. [1892b]. The poor law in relation to State-aided pensions. In: The Economic Journal, vol. 2, n. 5, p. 186-191.). A discriminação entre pobres merecedores e não merecedores seria uma forma de tentar não premiar a imprevidência e a displicência no lugar de um comportamento previdente e do trabalho duro e honesto.

O sistema proposto para administrar o auxílio aos pobres é relativamente complexo. Para ele, seria uma questão de justiça que os pobres merecedores e os não merecedores fossem tratados de forma diferenciada: o auxílio sendo prestado com contrapartidas mais leves no primeiro caso - a assistência sem reclusão em casas de trabalho [outdoor relief] podendo ser concedida, sujeita a algumas condições, a esse grupo25 25 Segundo Groenewegen, para Marshall: "[s]olicitantes de auxílio sem reclusão em casas de trabalho [outdoor relief ] deveriam carregar o ônus da prova ao demonstrar que o mereceriam, ao mesmo tempo em que as decisões de conceder o auxílio deveriam ser apoiadas em testes tais como o teste de poupança [thrift test ]" (Groenewegen, 1995a, p. 354). - e bem mais duras no segundo caso, em geral envolvendo a perda de liberdade."Enquanto isso não for feito, nosso tratamento do pobre não poderá deixar de ser gentil nos casos em que gentileza é parente de crime, e dura nos quais a dureza não é merecida (Marshall, [1884], 1966, p. 151MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

Entretanto, no seu entender, seria muito caro e ineficiente atribuir ao Estado a função de investigar a vida pregressa de cada pobre de forma a obter as informações necessárias para separar os "merecedores" dos "não merecedores". Marshall considerava ideal um modelo misto no qual o Estado entraria com um mínimo para todos os que precisavam de auxílio, e a sociedade civil na figura da Charity Organization Society ajudaria a classificar os trabalhadores e complementaria a ação estatal atribuindo mais para aqueles que merecem,e nada para os que não merecem:"A força da autoridade pública deveria ser combinada com a versatilidade, simpatia e delicadeza das agências voluntárias" (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 210REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.).26 26 Ele diz que as Charity Organization Societies, já cumpriam em parte esse papel: "Eu proponho que eles continuem seu trabalho como corpos semi-oficiais; que sua autoridade e seus recursos deveriam ser aumentados ao receberem do governo um mandato definido para ajudar os Guardiões [da lei dos pobres]" (Marshall, 1892a: p. 378, 379). Reisman (1987, p. 212-215) apresenta o complexo sistema de classificação dos pobres proposto por Marshall que envolvia três categorias: 1) Classe A:os pobres merecedores - a quem a ajuda deveria ser dada de forma suave fora das casas de trabalho; 2) Classe B: os casos difíceis - não se deveria mandálos para casas de trabalho, mas a discussão deveria ser feita na hora de fornecer fundos públicos. Preferencialmente esses casos deveriam ser tratados pela Charity Organization Society. 3) Classe C: os pobres não merecedores - estes seriam abrigados em casas de trabalho e submetidos à disciplina muito severa e isso seria função do Estado. Marshall julgava ainda fundamental incluir os próprios trabalhadores e os pobres - que são os beneficiários da Lei dos Pobres, e que conhecem seus defeitos - no processo de discussão dessas questões nas Comissões Parlamentares e no corpo de pessoas que decidem a concessão do auxílio.27 27 Ele chama de "deprimente comédia" o fato de se excluir trabalhadores das comissões parlamentares sobre Auxilio aos Pobres (Marshall, 1892a, p. 374). Para ele, essas comissões deveriam incluir "[...] homens e mulheres que viram o funcionamento da lei dos pobres e da Charity Organization Societies desde baixo. Uma comissão para investigar se as pessoas são bem calçadas deve adicionar ao conselho de especialistas em fazer sapatos, pessoas que usam os sapatos e sabem onde eles beliscam." (Marshall, 1892a, p. 379). Ver também a esse respeito Marshall (1892b, p. 189).

Nesta divisão, os "pobres não merecedores" - que constituíam boa parte do Residuum - ficariam sob a responsabilidade do Estado. Para ele,"[...] esta é uma classe que precisa de tratamento excepcional" (Marshall, [1920], 1982, p. 594MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). Como coloca Whitaker, para Marshall, no que concerne a ela "[...] os princípios do liberalismo econômico não teriam como ser aplicados" (Whitaker, 1977, p. 176WHITAKER, J. K. Some neglected aspects of Alfred Marshall's economic and social thought. In: HOPE, vol. 9, n. 2, 1977.). O Estado deveria forçar essa população a se "corrigir" e a fornecer condições mais favoráveis para o desenvolvimento de seus filhos. Isso envolveria disciplina das casas de trabalho e um cuidado especial com as suas crianças, que, na ausência de intervenção estatal, acabariam privadas do desenvolvimento de suas faculdades e perpetuariam a existência dessa classe.

[...] se eles [os pais provenientes do Residuum]puderem criar seus filhos de acordo com o seu próprio padrão, então a liberdade anglosaxônica irá engendrar maus resultados, por meio deles, sobre a geração seguinte. Seria melhor para eles, e muito melhor para a sociedade, que sejam submetidos a um padrãode disciplina algo similar ao que prevalece na Alemanha (Marshall, [1920], 1982, p. 594MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).28 28 "Quando os pais são incapazes de criar seus filhos adequadamente, o Estado deveria assumir o seu lugar [...] Para esse fim - escreve Marshall - dinheiro público tem que fluir livremente" (Caldari, 2004, p. 254). Como coloca Chase: "As crianças do 'Residuum' sofreriam por conta da privação de seus pais; capacidades latentes continuariam adormecidas e o 'Residuum' se perpetuaria. Nesse caso, portanto, Marshall advogava um papel potencial para o governo" (Chasse, 1984, p. 399).

Cuidar, educar, supervisionar, ou mesmo assumir em suas mãos os destinos dessas crianças, exigiria enorme gasto público; no entanto, seria, no entender de Marshall, uma função fundamental da qual o Estado não poderia se furtar.Além de importante para os diretamente envolvidos, seria indispensável para a sociedade como um todo elevar o padrão dessas crianças e resgatá-las da condição precária em que se encontravam.

Os gastos seriam grandes: mas não há nenhuma outra necessidade tão urgente quanto esta para ousados gastos. Iria remover o grande câncer que infecta todo o corpo danação: e quando o trabalho estiver completo os recursos que tiverem sido absorvidos por ele estariam liberados para alguma outro dever social mais agradável e menos urgente (Marshall, [1920], 1982, p. 595MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). 29 29 Descrevendo a posição de Marshall, Aslanbeigui & Wick (1996, p. 10) colocam que a renda necessária seria partilhada entre os pais, o Estado e a caridade privada. Marshall considerava que a contribuição proveniente da sociedade civil, no que diz respeito à questão da pobreza, tenderia a aumentar na medida em que os ricos se aprimorassem e começassem a exercer em maior medida o cavalheirismo econômico (Marshall, [1907], 1966, p. 345).

3.2_Ataque às causas da pobreza: pavimentando o caminho para uma sociedade melhor

O combate direto e imediato à pobreza e indigência era, como mencionado, apenas uma das estratégias que Marshall delineou para eliminar esse problema social. Outras medidas que melhorariam a condição de vida dos trabalhadores e que promoveriam direta e indiretamente o aprimoramento humano também foram defendidas. Essas incluíram investimentos em educação, fiscalização de moradias,planejamentourbano,garantia de acesso aáreas verdes e lazer, entre outras.

3.2.1_Educação e a criação de um círculo virtuoso

A educação era uma peça-chave na estratégia de Marshall de extirpar a pobreza e de melhorar o homem. Ela teria pelo menos dois impactos que lhe interessavam sobremaneira: por um lado, estimularia e desenvolveria diretamente as faculdades intelectuais e morais dos indivíduos e, por outro, aumentaria a produtividade do trabalho - ambos com efeitos benéficos sobre a geração de riqueza e a distribuição de renda.

É importante ressaltar que Marshall se preocupa com a educação em um sentido bastante amplo do termo - que vai além da educação escolar ou técnica. Ele enfatiza, nesse sentido, o papel desempenhado pela família, em especial pela mãe, na formação tanto de cidadãos conscientes, como de trabalhadores eficientes (Marshall, [1920], 1982, p. 600MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).30 30 No seu entender, a "[...] habilidade geral [dos indivíduos] depende largamente do ambiente da infância e juventude. Neste, a primeira, e de longe a mais importante, influência é aquela da mãe" (Marshall, [1920],1982, p. 172). Por diversas vezes, Marshall indica que a principal função da mulher seria educar os filhos e manter um lar feliz e ordenado.A sua presença em casa e a atenção e o carinho despendidos nos cuidados dos seus filhos seriam, no seu entender, essenciais para o tão almejado resgate moral e intelectual da classe trabalhadora. Onde acontecia de as mães estarem ausentes do lar ou se encontrarem exauridas por trabalhos pesados, o resultado social observado era muito ruim.

[...] a degradação da classe trabalhadora varia quase uniformemente com o montante de trabalho duro executado por mulheres. O mais valioso de todos os capitais é aquele investido em seres humanos; e deste capital, a parte mais preciosa é resultado do cuidado e da influênciada mãe, contanto que ela retenha os seus instintos ternos e altruístas, e não tenha sido endurecida pelo esforço e estresse de trabalhos não-femininos (Marshall, apud Groenewegen, 1995a, p. 510GROENEWEGEN, P. A Soaring Eagle: Alfred Marshall 1842-1924. Edward Elgar, Aldershot, 1995a.).

Provavelmente, por conta disso, Marshall assumiu uma posição conservadora - comum na era vitoriana, mas que representou um retrocesso quando comparada àquela de seu antecessor J. S. Mill - em relação ao papel da mulher na sociedade.31 31 Groenewegen (1995a) relata que Marshall na sua juventude adotou uma visão progressista no que concernia ao papel da mulher, principalmente no que se refere ao ensino superior, mas, após sua passagem por Bristol, ele abandonou essa posição em prol de uma mais conservadora - por conta disso, o autor caracteriza Marshall como um " feminist manqué". Já como professor de Cambridge, Marshall fez campanha contra a atribuição de diplomas ou títulos às mulheres e combateu com afinco qualquer movimento em favor de aumentar o espaço delas ou de atribuir a elas um status similar ao dos homens (Groenewegen, 1995a, p. 501-506). Essas posições foram motivos de tensão entre ele e sua esposa, Mary Paley, - que não era uma mulher convencional. Mary estudou Filosofia Moral, deu aulas, mesmo depois de casada, de Economia Política (para um público essencialmente feminino) em Bristol e Cambridge - e tinha ideias bastante diferentes das do marido no que diz respeito à participação feminina na Universidade (Groenewegen, 1995a, p. 247-250). Para uma breve exposição sobre as posições de Marshall a respeito da educação feminina, ver Tullberg (2006, p. 528). Opôs-se, por exemplo, ao voto feminino, à equivalência de salários entre homens e mulheres, ao emprego de mulheres casadas, e posicionou-se a favor dos Atos Fabris, que limitavam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e defendeu um "salário-família" para os trabalhadores do sexo masculino de forma a que pudessem sustentar suas esposas e filhos (Pujol, [1984], 1996, p. 332-339PUJOL, M. [1984] (1996). Gender and class in Marshall's Principles of Economics. In: Alfred Marshall - Critical assessments second series. Vol. VI. Edited By John Cunninham Wood. Routledge, London and New York.; Groenewegen, 1995a, p. 493-526GROENEWEGEN, P. A Soaring Eagle: Alfred Marshall 1842-1924. Edward Elgar, Aldershot, 1995a.).32 32 Segundo Pujol ([1984], 1966, p. 338), Marshall defendeu a importância de educar as mulheres basicamente como forma de capacitá-las melhor para essa tarefa de educar os filhos e administrar o lar.

Todavia, a educação formal ocupou igualmente lugar de destaque nas propostas de Marshall. Ela também seria fundamental para a formação de cidadãos mais nobres e para o aumento da eficiência no trabalho e da riqueza. Marshall exortava que um grande investimento deveria ser feito nessa área e que, para tal destino, "[...] dinheiro deve fluir livremente." (Marshall, [1920], 1982, p. 597MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). No seu entender o "[...] Estado que investiu com sucesso em telégrafos, deve agora se aventurar a investir nos homens" (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 200REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.).

Dada a sua imensa preocupação com o aprimoramento humano, fica claro que, mesmo que a educação não tivesse nenhum impacto sobre a riqueza, Marshall, ainda assim, apoiaria grandes investimentos nesse setor por conta de seus efeitos benéficos sobre a natureza humana. Para ele, a educação "[...] considerada como um fim em si mesma, não é inferior a nenhum daqueles fins que a produção de riqueza material poder ser levada a servir" (Marshall, [1920], 1982, p. 176MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). Uma educação abrangente, além de aperfeiçoar as faculdades ativas do homem, cultivaria nos homens características morais que os tornariam mais previdentes e responsáveis (Marshall, [1920], 1982, p. 597MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).

Contudo, como mencionado, Marshall acreditava que o impacto sobre a produção de riqueza material também era bastante relevante.A educação aumentaria a eficiência do trabalho e a capacidade de o trabalhador contribuir para o crescimento econômico.33 33 Para Marshall, as faculdades humanas são "[...] um meio de produção como qualquer outro tipo de capital" (Marshall, [1920],1982, p. 191). Investir no homem levaria a um aumento na riqueza equivalente ao investimento em máquinas.

[...] Estimula a sua atividade mental; patrocina nele um hábito de questionamento inteligente: torna-o mais inteligente, mais vivaz e mais confiável em seu trabalho habitual; eleva a qualidade de sua vida nas horas de trabalho e nas horas em que não trabalha; é, assim, um importante instrumento na produção da riqueza nacional [...] (Marshall, [1920], 1982, p. 175, 176MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).

Forçar os pais a educarem os seus filhos seria uma medida especialmente importante para crianças cujos progenitores compunham o Residuum ou estavam entre os "pobres não merecedores". Para garantir isso, Marshall não se importava em adotar uma postura paternalista. No seu entender, "[...] o caso daqueles, que são responsáveis por crianças pequenas, demanda um grande gasto de fundos públicos e, uma subordinação mais estrita da liberdade à necessidade pública" (Marshall, [1920], 1982, p. 595MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). Garantir a educação dessas crianças seria um dos mais prementes deveres da sociedade.34 34 Para Marshall, a sociedade "[t]em o dever de garantir que nenhuma criança crescerá na ignorância [...] É abundantemente claro que se não forçarmos as crianças a freqüentarem a escola, não podemos possibilitar que multidões delas sejam capazes de escapar de uma vida de ignorância tão completa que elas certamente tornar-se-ão brutas e degradadas. [...] somente um conselho escolar [school-board] é capaz de salvar desta ruína aquelas crianças cujos pais são avessos à educação" (Marshall, 1873, p. 117).

[...] O mais urgente entre os primeiros passos no sentido de fazer o Residuum desaparecer da terra, é insistir em freqüência escolar regular [das crianças] em vestimentas decentes e com corpos limpos e relativamente bem alimentados. No caso de fracasso, os pais devem ser advertido se aconselhados: como último recurso as casa podem ser fechadas ou regulamentadas com alguma limitação de liberdade dos pais (Marshall, [1920], 1982, p. 595MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). 35 35 A obrigatoriedade de frequentar a escola significava o controle do trabalho infantil. E, de fato, Marshall louvava os Atos Fabris que regulamentaram trabalho infantil (Reisman, 1987, p. 201).

Ademais, tornar a educação compulsória e fornecer condições para que todas as crianças - independentemente de classe social - estudassem, seria uma forma de evitar o enorme desperdício de talentos que Marshall observava em sua época. Por falta de oportunidades, os gênios nascidos entre os pobres viam minguarem as suas faculdades e deixavam de dar contribuições potencialmente muito valiosas à sociedade.36 36 "[...] Não há extravagância mais prejudicial ao crescimento da riqueza material do que a negligência desperdiçadora que permite que gênios nascidos com ascendência humilde consumiremse em trabalhos humildes" (Marshall, [1920], 1982, p. 176). Reduzir essa forma de desperdício seria, para Marshall, crucial.

[...] Nenhuma mudança conduziria de forma tão importante ao aumento da riqueza material quanto uma melhora nas nossas escolas, e em especial, as de nível médio [midle grades], contanto que combinada com um sistema extensivo de bolsas de estudos que permitisse ao filho inteligente de um trabalhador elevar-se gradualmente de escola em escola até que tenha a melhor educação prática e teórica que a época pode fornecer (Marshall, [1920], 1982, p. 176MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.).

Além de permitir à sociedade aproveitar melhor os seus talentos latentes, o acesso generalizado à educação faria com que os filhos dos trabalhadores não qualificados conseguissem executar tarefas mais complexas - para as quais a demanda de trabalho era crescente - e abandonar os trabalhos mais pesados, exaustivos e repetitivos de seus pais. E isso era visto como muito positivo, dada a natureza degradante desse tipo de trabalho e a sua baixa remuneração.37 37 Para Marshall: "[a]s crianças dos trabalhadores não-qualificados precisam ser tornadas capazes de obter os salários dos trabalhadores qualificados [...] A existência da nossa atual classe mais baixa [lower class] é quase inteiramente um mal [...] e as crianças uma vez nela nascidas, deveriam ser auxiliadas a deixá-la" (Marshall, 1982, p. 598). Como coloca Bowman: "Trabalho que se tornasse mais eficiente poderia então ser incluído no processo de produção a uma remuneração permanentemente mais elevada. Para Marshall, esse resultado tinha uma importância profunda [...]" (Bowman, 2004, p. 506).

Como resultado, a pobreza e a falta de qualificação deixariam de ser hereditárias, e o círculo vicioso começaria a ser rompido: A maior eficiência no trabalho levaria a um aumento na riqueza e abriria caminho para que esses trabalhadores obtivessem salários mais elevados.A resultante melhoria na situação de vida possibilitaria que oferecessem condições favoráveis ao desenvolvimento de seus filhos, gerando um efeito benéfico cumulativo.

Além disso, qualificar a população teria o efeito positivo de gerar uma escassez relativa de mão de obra não -qualificada - o que elevaria os salários pagos na execução desse tipo de tarefas, melhorando a condição de vida também desses trabalhadores e a distribuição de renda da sociedade (Jensen,1987, p. 444JENSEN, H. E. (1987). Alfred Marshall as a social economist. In: Alfred Marshall - Critical assessments second series. Vol. VI. Edited By John Cunninham Wood. Routledge, London and New York.).

3.2.2_O combate às condições de vida insalubres: as questões das moradias, do planejamento urbano e do acesso ao lazer

Um último pilar do ataque de Marshall à pobreza diz respeito às medidas que ele propõe para melhorar a qualidade de moradia e de lazer dos trabalhadores. Londres era, na época, uma cidade com habitações apertadas e precárias, cortiços densamente ocupados, ar poluído, falta de opções culturais e de espaços ou parques ao ar livre onde os velhos pudessem descansar, e as crianças, brincar. Essa situação tenderia, segundo Marshall, a minar o vigor dos seus habitantes e a diminuir a eficiência do seu trabalho.38 38 Descrevendo as condições em Londres, Marshall coloca: "[...] residência por muitos anos no meio à fumaça, e com quase nada do puro prazer da luz do sol e de campos verdes, gradualmente rebaixa a constituição física [...] o Londrino puro-sangue [thoroughbred Londener] raramente é um trabalhador perfeito" (Marshall, [1884], 1966, p. 144). E ele de fato relata que "[...] existe um grande número de pessoas que com o físico deficiente e com pouca força de vontade, sem iniciativa, sem coragem, sem esperança, e com quase nenhum auto-respeito, que a miséria leva a trabalhar [em Londres] por salários inferiores ao que trabalho de mesma natureza recebe no campo" (Marshall, [1884], 1966, p. 144, 145). Amplas moradias, esperança e condições salubres de existência certamente eram consideradas elementos "necessários à eficiência" e sua ausência explicariam, em parte, a baixa eficiência do trabalho que vigorava entre esses trabalhadores. Seria, assim, fundamental reverter essa condição que ajudava a degradar os seus concidadãos:

É inegável que a moradia das classes muito pobres nas nossas cidades é destrutiva para a alma e para os corpos; e que com os atuais recursos e conhecimentos não temos razões, nem desculpas para permitir que continue (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 186REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.).

A difícil tarefa de melhorar as condições de vida em Londres e em outras cidades caberia em grande medida ao Estado, mas deveria contar também com a ajuda de associações voluntárias.

Marshall rejeitou a provisão direta de (ou subsídios à) moradias para os pobres como solução para os problemas, uma vez que entendia que essas medidas só serviriam para incentivar a migração e saturar ainda mais os centros urbanos (Reisman, 2006, p. 499REISMAN, D. State intervention. In: The Elgar companion to Alfred Marshall. Edited by Tizzano Raffaelli, Giacomo Beccattini and Marco Dardi. Edward Elgar, Chletenham UK and Northhampton, USA, 2006.; Hutchison, 1969, p. 246HUTCHISON, T. W. Economists and economic policy in Britain after 1870. In: History of Political Economy HOPE, n. 2, p. 231-255, 1969.). As suas propostas incluíram, por um lado, a regulamentação dos cortiços e das residências superocupadas e, por outro, ações no sentido de facilitar/incentivar a retirada dos trabalhadores e indústrias para outras regiões.

O combate à superocupação e à precariedade das moradias e dos cortiços caberia ao Estado e dar-se-ia na forma de fiscalização sanitária, de implantação de um padrão compulsório de pés cúbicos por habitante e da imposição de multas aos locadores que não cuidassem devidamente das condições de higiene das residências ou não respeitassem o padrão de ocupação estabelecido: "Aqueles que não são capazes de administrar suas casas de forma apropriada e de exercer o controle sobre os hábitos sanitários de seus inquilinos devem ser multados até que as vendam para outros que sejam" (Marshall, [1884], 1966, p. 148MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

Todavia, Marshall considerava que essa transição para uma situação melhor demandaria tempo, pois teria que ser implementada gradativamente tendo como ponto de partida a (péssima) situação vigente (Marshall, [1920], 1982, p. 597. 598MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.):

[...] O espaço na casa [house-room] exigido para cada pessoa e o espaço livre exigido entre as casas devem começar a partir de um nível viável e aumentar de forma estável e certa até que um alto padrão seja atingido (Marshall, [1884], 1966, p. 148MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

Boa parte do problema habitacional de Londres (e de outros centros urbanos) se devia à saturação populacional, que inflacionava os aluguéis, deteriorava as condições de vida, com efeitos perversos sobre a saúde, a inteligência, a moral e a eficiência dessa população. A regulamentação das moradias urbanas tinha, em grande medida, a intenção de impossibilitar que novos migrantes se mudassem para a cidade (ao limitar o número de habitantes por casa e exigir um padrão sanitário mais elevado).39 39 Sobre a imigração para Londres, Mill afirma: "Destes imigrantes uma boa parte não faz bem para si ou para os outros ao virem para Londres, e não haveria nenhuma dificuldade [hardship] em desestimular que os piores deles venham, ao insistir em regras severas em relação a sua forma de vida lá" (Marshall, [1884], 1966, p. 147). Para Marshall: "A implantação abrangente de tais regras por si só iria [...] livrar Londres de sua população supérflua; só moraria lá quem é lá desejado [...] O sofrimento causado no caminho seria como nada quando comparado com o ganho final" (Marshall, [1884], 1966, p. 148). E Marshall considerava esse objetivo totalmente legítimo.

Impedir as pessoas de irem para onde a sua presença ajuda a diminuir o padrão médio de vida das pessoas, não é mais contrárioaos princípios econômicos do que a regra que, quando um barco está lotado, deve-se recusar que outros entrem, mesmo que eles estejam dispostos a assumir o risco de se afogarem ( Marshall, [1884], 1966, p. 147, 148MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York. ).

Todavia, apenas dificultar a migração para Londres não seria suficiente. Marshall via o deslocamento de parte da população londrina para subúrbios mais distantes - onde o ar era limpo e onde haveria possibilidade de casas maiores com possibilidade de lazer ao ar livre em jardins e parques - como compondo parte da solução do problema (Marshall, apud Caldari, 2004, p. 532CALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.).

[...] Toda a área de Londres é insuficiente para ofertar à sua população o ar-fresco e espaço livre que é necessário para uma recreação saudável [...] Existem várias classes da população de Londres cuja remoção para o campo seria no longo prazo economicamente vantajosa - que iria beneficiar tanto aqueles que mudaram como os que ficaram para trás (Marshall, [1884], 1966, p. 142MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

Os que se mudaram teriam condição de moradia e de vida muito mais saudáveis, com efeitos positivos em termos físicos, morais e intelectuais. E a saída desses trabalhadores, além de abrir espaço para os que ficaram, causaria diminuição tanto na oferta de trabalho como na demanda por moradias, elevando os salários e diminuindo os aluguéis nas grandes cidades.40 40 "[...] a competição por seu trabalho iria forçar a Londres rica a pagar, como pode fazer, salários altos o suficiente para cobrir o custo de acomodações boas [...] (Marshall, [1884], 1966, p. 148).

Marshall propôs inclusive a criação de um comitê para analisar como se poderia ajudar os pobres a saírem de Londres (Marshall, [1884], 1966, p. 149MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.) - uma vez que considerava que era mais eficaz efetuar gastos nesse sentido do que tentar sanar os males que a vida londrina lhes infligia.

Em Londres, mesmo quando suas casas são caiadas, o céu será escuro; sem alegria, eles ainda tenderão a beber para se entusiasmar; eles continuarão a se deteriorar [...] Enquanto isso, eles ocupam um espaço que, se tivessem se retirado, seria liberado para aqueles que necessitam ficar [em Londres] respirarem mais livremente, e para seus filhos brincarem (Marshall, [1884], 1966, p. 146, 147MARSHALL, A. [1884] (1966). Where to house the London Poor. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

No entanto, Marshall acreditava que esse deslocamento deveria ser encampado e patrocinado por associações voluntárias da sociedade civil e não pelo Estado (Reisman, 1987, p. 188REISMAN, D. Alfred Marshall: Progress and politics. Macmillan Press, 1987.). E ele mesmo manteve relações com dois movimentos que visavam melhorar a situação de moradia e vida dos pobres: o Garden City Movement e a Society for Promoting Villages (Caldari, 2004, p. 530CALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.).

O planejamento urbano era visto, por sua vez, como função do Estado. Seria fundamental que as autoridades públicas traçassem antecipadamente um plano de expansão para as cidades - "[...] uma tarefa mais vital para a saúde e felicidade de gerações vindouras do que qualquer outra que pode ser feita pela autoridade com tão pouco trabalho, enquanto que o esforço privado é totalmente impotente para a função" (Marshall, [1907], 1966, p. 336MARSHALL, A. [1907] (1966). The social possibilities of economic chilvary. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. C. Pigou, Augustus M. Kelley, New York.).

Seria essencial que o Estado não só planejasse, mas também provesse áreas de lazer ao ar livre para toda a população. A existência de jardins, parques ou outras áreas ao ar livre adequadas para o descanso dos trabalhadores e para as brincadeiras de suas crianças era vista como essencial para a saúde e para o bom desenvolvimento físico, mental e moral da população - tendo também impactos importantes sobre a eficiência do trabalho.A ausência desses espaços era considerada um grave mal e, por isso, para Marshall, dinheiro público teria que "[...] fluir livremente para prover ar-fresco e espaço para brincadeiras saudáveis em todos os bairros da classe trabalhadora [...]" (Marshall, [1920], 1982, p. 597MARSHALL, A. [1920] (1982). Principles of Economics. Porcupine Press, Pennsylvania.). Ele propõe, inclusive, a criação de um imposto - o "Fresh-Air Rate" - como uma das formas para angariar recursos para esse fim. Seria um imposto a ser cobrado dos proprietários de terra urbanos e deveria ser gasto na construção de pequenas áreas verdes nos distritos industriais e na preservação de grandes áreas verdes entre as diferentes cidades ou distritos (Caldari, 2004, p. 532, 523CALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.).

Por fim, caberia ao Estado utilizar também recursos provindos desse e de outros impostos para abrir aos pobres a possibilidade de contato com obras de arte e com outros tipos de amenidades. Isso porque, no seu entender, "[...] somente o Estado pode fazer com que as belezas da natureza e da arte estejam ao alcance do cidadão comum. [...]" (Marshall, [1907], 1966, p. 344, 345MARSHALL, A. [1907] (1966). The social possibilities of economic chilvary. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. C. Pigou, Augustus M. Kelley, New York.) - e esse contato era considerado parte integrante de uma boa qualidade de vida e importante para o aprimoramento humano.

Em carta ao Bishop Westcott, Marshall revela, de forma bastante explícita, a importância que ele atribuía a essas reformas como instrumentos capazes de eliminar a indigência e a pobreza e garantir um futuro melhor para a próxima geração:

Há somente um remédio eficaz [para eliminara pobreza] [...] É remover a fonte de fraqueza industrial: melhorar a educação da vida doméstica, e as oportunidades de brincadeiras prazerosas ao ar livre para os jovens; retê-losmais tempo na escola; cuidar deles de formamais paternal do que fazemos quando dos seus pais os negligenciam. Aí o Residuum será atacado na sua fortaleza (Marshall, apud Caldari, 2004, p. 523, ênfase no originalCALDARI, K. Alfred Marshall's idea of progress and sustainable development. In: Journal of the History of Economic Thought, vol. 26, n. 4, p. 519-536, 2004.).

É verdade que tais medidas só surtiriam o efeito desejado depois de um longo período de tempo. Marshall não acreditava em mudanças radicais ou em soluções "mágicas" para os problemas de sua sociedade.41 41 Caldari (2006, p. 484) ressalta que, para Marshall, as mudanças precisariam ser feitas de forma gradual, já que a mudança na natureza humana é morosa, e para perdurarem as instituições precisam ser adequadas aos homens. Assim como coloca Bowman (2004, p. 499, 500): "[...] é em longos períodos de tempo que progressos econômico e social significativos poderiam ocorrer e que políticas poderiam ter efeitos benéficos em facilitá-los [...]". Nesse sentido, a epígrafe escolhida para os Princípios - Natura non facit saltum - representa bem a perspectiva evolucionária que ele adota não só no âmbito teórico, mas também na esfera da reforma social. Seria necessário deixar que os efeitos cumulativos positivos surtissem seus resultados benéficos através, talvez, de gerações antes de a pobreza ser, enfim, extirpada. No entanto, apesar de não considerar existir uma saída imediata para os problemas vigentes, ele defendia que a sociedade deveria "[...] pressionar de forma constante para frente em direção à meta distante na qual as oportunidades de uma vida nobre possam estar aberta para todos" (idem).

4_Considerações finais

Sem dúvida o grande legado de Marshall à Economia moderna se deu no campo da teoria econômica, e não é por acaso que a análise desse lado de seu pensamento tenha predominado na literatura. No entanto, é importante não perder de vista que a grande motivação subjacente ao seu trabalho em Economia estava ligada à sua vontade de transformação de sua sociedade. Como coloca A. C. Pigou, Marshall encarava esta ciência basicamente como "[...] um instrumento, por meio do aperfeiçoamento do qual seria possível melhorar a condição da humanidade" (Pigou, apud Jensen, [1990], 1996, p. 143JENSEN, H. E. [1990] (1996) Value premises in the economic thought of Alfred Marshall. In: Alfred Marshall - Critical Assessments Second Series. Vol. VII. Edited by John Cunninham Wood. Routledge, London and New York.). Ela seria uma ciência muito útil, uma vez que o conhecimento por ela gerado forneceria as bases para os economistas chegarem a soluções práticas para os problemas sociais vigentes.

A importância que Marshall dava a atuação social dos economistas fica clara no discurso que proferiu ao assumir a cadeira de Economia Política de Cambridge, quando declara que o seu principal objetivo no novo posto seria:

[...] aumentar o número daqueles que Cambridge [...] manda ao mundo com cabeças ponderadas, mas com corações quentes, dispostos a dedicar pelo menos parte de seus melhores poderes para combater o sofrimento que os circunda, resolvidos a não ficarem satisfeitos enquanto não tiverem feito tudo em seu poder para descobrir o quanto é possível abrir para todos os meios materiais de uma vida nobre e refinada (Marshall, [1885], 1966, p. 174MARSHALL, A. [1885] (1966). The present position of Economics. In: Memorials of Alfred Marshall. Ed. A. G. Pigou. A. M. Kelley, New York.).

Essa visão do papel social do economista fez com que Marshall julgasse fundamental que esse possuísse não só "[...] as três grandes faculdades intelectuais, percepção, imaginação e razão [...]" (Marshall, apud Coats, 1990, p. 167COATS, A.W. Marshall and ethics. In Alfred Marshall in Retrospect. Ed. Rita Mc Williams Tullberg. Edward Elgar, Aldershot, 1990.), que obviamente seriam importantes na sua atuação enquanto cientista, mas também "[...] a faculdade da simpatia, e, especialmente, a rara simpatia que permite as pessoas a se colocarem no lugar não somente de seus camaradas, mas também daqueles de outras classes" (idem) - que o tornaria ansioso por resolver os problemas dos menos favorecidos. Além de ter sido muito bem dotado das três primeiras faculdades, Marshall revelou ter a simpatia com as outras classes como uma característica igualmente marcante. Na qualidade de economista ele fez pleno uso das suas faculdades para desenvolver a ciência, mas também nunca se eximiu da responsabilidade de buscar o melhoramento social.

É possível afirmar que ele encarnou de forma exemplar a postura que visava a cultivar em seus alunos.Ao longo de toda a sua vida, ele buscou achar meios de resgatar os pobres e indigentes da condição degradada em que se encontravam e abrir para todos a possibilidade de uma vida mais elevada - e a agenda de reformas que ele apresenta pode ser vista como o resultado dessa busca.

Sendo assim, dar a devida ênfase ao lado normativo do pensamento de Marshall parece fundamental, uma vez que isso nos possibilita uma visão mais completa do seu empreendimento intelectual no que concerne à Economia. Além disso, faz mais justiça ao autor, uma vez que, independentemente do valor que tais reflexões normativas possam ter para a Economia hoje em dia, era esse o lado de seu trabalho que Marshall considerava o mais precioso.

  • 1
    Este artigo baseou-se no cap. 5 da minha tese de livre-docência defendida na FEA-USP, em 2012, e foi escrito como parte das minhas obrigações como bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Uma versão preliminar do trabalho foi apresentada no III Ciclo de Seminários de Metodologia e História do Pensamento Econômico do Cedeplar/UFMG. O trabalho pôde contar, assim, com comentários feitos pela banca de livre-docência (composta dos professores Ana Maria Bianchi, Maurício Coutinho, Hugo Cerqueira, Leda Paulani e Ramón Fernandez), com observações feitas pelos participantes do Seminário do Cedeplar, e com as sugestões apresentadas pelo parecerista anônimo da revista - agradeço a todos os envolvidos. Por fim, agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro concedido.
  • 2
    Marshall relata o seu caminho para a Economia da seguinte forma: "Da metafísica eu fui para a ética, e achei que justificar a sociedade existente não era fácil. Um amigo, que tinha lido muito sobre que hoje se denomina Ciências Morais, constantemente dizia: 'Ah! Se você entendesse de Economia Política você não diria isso'. Então eu li os Princípios de Economia Política de Mill, e fiquei muito excitado com o livro. Eu tinha dúvidas sobre a adequação das desigualdades de oportunidade, mais do que das desigualdades nos bens materiais. Então, nas minhas férias eu visitei os quarteirões mais pobres de várias cidades e andei em uma rua após a outra, olhando para as caras das pessoas mais pobres. Em seguida, eu resolvi fazer o estudo mais completo possível de Economia Política" (Marshall, apud Keynes, [1925], 1966, p. 10). Depois de descartar outros possíveis candidatos, Groenewegen (1995a, p. 144) especula que este amigo que levou Marshall à Economia Política foi, provavelmente, Henry Sidwick.
  • 3
    Podemos notar uma ponta de irritação nas observações de Keynes, uma vez que ele considerava as contribuições de Marshall enquanto cientista muito mais valiosas do que aquelas enquanto pregador ou pastor dos homens (Keynes, [1925], 1966, p. 12), e via com frustração que "[...] os olhos penetrantes e as asas potentes de uma águia eram freqüentemente chamados de volta a terra para fazer o papel de moralizador"(idem).
  • 4
    Podemos citar Whitaker (1977), Jensen (1987), Bowman (2004) e Reisman (1987 & 1990), Groenewegen (1995a) como exemplos recentes dessa parca bibliografia que analisa a filosofia social de Marshall.
  • 5
    Marshall aponta: "[...] as condições que circundam a pobreza extrema, especialmente em lugares densamente ocupados, tendem a amortecer as faculdades superiores [...]" (Marshall, [1920], 1982, p. 2).
  • 6
    Como coloca Caldari, para Marshall,"[n]ão é suficiente para o homem aumentar o seu comando sobre a Natureza; é também necessário desenvolver as faculdades que lhe permitam usar corretamente esse comando[...]." (Caldari, 2004, p. 524). Segundo Marshall, "[...] sempre houve um substrato de concordância de que o bem social se encontra principalmente no exercício saudável das faculdades e no seu desenvolvimento, que rende felicidade sem tédio [without pall] por que mantém o auto-respeito e é mantida pela esperança" (Marshall [1897], 1966, p. 310). Um indício de que o progresso que interessava a ele não se limitava ao progresso puramente material, é a distinção que ele faz entre aumento de padrão de vida (standard of life) e padrão de conforto (standard of comfort). Ele não se satisfazia com meras melhorias materiais que não redundassem em aprimoramentos dos próprios indivíduos. O verdadeiro progresso - que ele associa a melhorias no padrão de vida - envolveria fortalecimento de caráter, e melhorias nos costumes, nos desejos e nos gastos de consumo: "[...] uma elevação do padrão implica um aumento na inteligência, energia e auto-respeito; levando a mais cuidado e critério no gasto, e a evitar comidas e bebidas que satisfazem o apetite, mas não fornecem força, e modos de vida que são moralmente e fisicamente insalubres [unwholesome]." (Marshall, [1920], 1982, p. 574).Para mais sobre essa diferença entre "padrão de conforto" e "padrão de vida", ver Aspers (1999, p. 657), Chasse (1984, p. 393, 403) e Whitaker (1987, p. 353).
  • 7
    "Progresso humano verdadeiro é principalmente uma melhora na capacidade de sentir e de pensar, mas não pode ser mantida sem energia e empreendimento vigoroso. Um certo nível mínimo de meios é necessário para o bemestar humano, e algo um pouco acima deste mínimo é necessário para uma classe de vida elevada [high class life]" (Marshall, apud Groenewegen, 1995b, p. 145, ênfase adicionada). Para uma exposição da visão de progresso em Marshall, ver Caldari (2004), e, para uma versão mais sucinta, ver Caldari (2006).
  • 8
    Como aponta Viner: "[...] O progresso que ele buscava [...] não era meramente uma questão de mais bens, mas de acesso a, e gosto por, mais lazer, uma vida mais refinada para todas as pessoas, de forma que até os carregadores de varas [hodcarriers] pudessem ser gentlemens [...]" (Viner, 1941, p. 227)
  • 9
    Marshall ressalta, no entanto, que "[...] o termo 'trabalhador não qualificado' está constantemente mudando de significado" (Marshall, [1920], 1982, p. 171). Ele aponta que mesmo o trabalhador não qualificado da Inglaterra era capaz de desempenhar muitas funções que trabalhadores de outros países não eram. Existiriam raças mais atrasadas que "[...] são incapazes de desempenharem qualquer tipo de trabalho por qualquer período de tempo mais longo; e mesmo o mais simples dos trabalhos que consideramos não-qualificados é trabalho qualificado para eles; pois eles não têm o requisito de assiduidade, que só podem adquirir depois de longo treinamento" (idem).
  • 10
    As atividades econômicas exercidas pelos homens eram, para Marshall, um dos elementos fundamentais na formação do seu caráter (Marshall, [1920] (1982), p. 1). Elas poderiam atuar no sentido de aprimorá-lo ou, como seria no entender do Marshall o caso dos trabalhadores não qualificados, degradá-lo.
  • 11
    Ainda se referindo à realidade dessas pessoas, Marshall afirma na mesma direção:"[...] Sobre-carregadas de trabalho [overworked] e sem educação suficiente [undertaught], exaustas e oprimidas, sem quietude e sem lazer, elas não têm qualquer chance de aproveitarem ao máximo as suas faculdades mentais" (Marshall, [1920], 1982, p. 2). Além de degradar física e intelectualmente o homem, esse tipo de atividade acabaria por perverter também, segundo Marshall, os valores morais do trabalhador, ao fazer com que procurasse divertimentos fáceis e pouco enobrecedores (Marshall, 1873, p. 107). "Descanso é tão essencial para o crescimento de uma população vigorosa quanto os quesitos materiais como comida, vestimenta, etc. Sobre-trabalho de qualquer forma reduz a vitalidade; enquanto a ansiedade, preocupação e esforço mental excessivo têm uma influência fatal em minar a constituição, em prejudicar a fertilidade e em diminuir o vigor da raça" (Marshall, [1920], 1982, p. 164).
  • 12
    Marshall (1873) contrapõe a esse tipo de trabalho mutilador e degradante, o trabalho de gentlemen, que teria a qualidade de enobrecer e desenvolver os homens. Esse tipo de trabalho forçaria o homem a utilizar todas as suas faculdades e seria exercido de forma a permitir o desfrute do descanso e de lazer, tão necessários ao desenvolvimento intelectual e moral. Neste texto, Marshall pinta em cores dramáticas a situação do trabalhador manual e sem qualificação que viveria justamente uma situação diametralmente oposta a esta. A sua ambição era que, com o progresso social, todos os trabalhadores viessem a exercer atividades de gentlemen.
  • 13
    Como coloca Marshall: "[...] a grande lei da distribuição é que quanto mais útil for um fator de produção, e quanto mais escasso for, mais alta será a taxa à qual os seus serviços são pagos [...]" (Marshall, apud Herbert, 2003, p. 66). No caso, o trabalho, além de ser abundante, seria pouco útil à produção ao ser ineficiente. A consequência natural seria a baixa remuneração.
  • 14
    A descrição de Marshall é bastante pessimista: "[a]queles que têm sido chamados de Residuum de nossas grandes cidades têm pouca oportunidade para a amizade; eles não conhecem nada a respeito da decência e da quietude, e pouco até sobre a unidade da vida familiar; e a religião frequentemente fracassa em alcançá-los" (Marshall, [1920], 1982, p. 2). Como aponta Reisman, o Residuum seria deixado para trás na escada do progresso e estaria preso no círculo vicioso que autoperpetua as privações (Reisman, 1987, p. 204).
  • 15
    Como coloca Chasse: "As crianças do 'Residuum' sofreriam com a privação de seus pais; habilidades latentes iriam permanecer dormentes, e o 'Residuum' iria se perpetuar [...]." (Chasse, 1984, p. 399).
  • 16
    Marshall contribuiu de várias formas como conselheiro do governo em inúmeros campos da economia. Dessas as que têm relação mais próxima com este artigo são a sua participação redigindo memorandos e respondendo às questões dos Comissários do Royal Comission on the Aged Poor, e como Comissário da Royal Labour Comission. Mas, além disso, aconselhou o governo no que tange à Depressão e Ciclos, Taxação, Trocas Internacionais, entre outros assuntos. Para um detalhado relato dessas experiências de Marshall como conselheiro do governo, ver Groenewegen (1995a, cap. 11).
  • 17
    A esse respeito, Marshall diz: "Foi somente na última geração que um estudo cuidadoso começou a ser feito sobre os efeitos de altos salários no aumento da produtividade não só daqueles que os recebem, mas também de seus filhos e netos" (Marshall, apud Bowman, 2004, p. 506). E, como aponta Bowman, essa ideia causou impacto entre os economistas contemporâneos a Marshall:" De acordo com F.Y. Edgeworth, a teoria de Marshall sobre o efeito cumulativo de altos salários sobre a eficiência 'parecia quase uma revelação' para os economistas da época" (Bowman, 2004, p. 506).
  • 18
    É interessante notar, entretanto, como faz Chasse, que, para Marshall, "[...] o princípio da causação cumulativa poderia funcionar também para a desvantagem de trabalhadores perfeitamente capazes que, por conta de desvantagens nas negociações ou simplesmente por conta das forças de oferta e demanda, aceitam salários baixos demais para prover os meios necessários para a eficiência. Sem esses, sua eficiência como trabalhadores cairia e eventualmente cairia o seu salário normal. Sua eficiência como negociadores declinaria também. Como resultado haveria um declínio cumulativo sobre sua eficiência e sobre aquela de seus descendentes" (Chasse, 1984, p. 399). Essa situação coaduna bem com aquela descrita por Marshall no que concerne aos trabalhadores não qualificados de sua época.
  • 19
    Na avaliação do Reisman: "Qualquer que fossem suas visões sobre uma legislação sobre salário mínimo, Marshall era bastante a favor de ação governamental desse tipo - políticas que tinham como finalidade aumentar o salário médio das classes que recebiam salários baixos via o caminho indireto de mudança estrutural prévia" (Reisman, 1987, p. 207).
  • 20
    Groenewegen relata que inicialmente Marshall era contra taxação redistributiva com alíquotas progressivas por achar que essas poderiam prejudicar o trabalho e a poupança, mas, posteriormente, muda de ideia e passa a considerar que "[...] tais taxas eram um instrumento útil de política social, especialmente se seus proventos fossem gastos de maneira satisfatória [...]" (Groenewegen, 1995a, p. 150). A respeito da posição de Marshall sobre imposto progressivo, ver também Bowman (2004, p. 504) e Reisman (2006, p. 497).
  • 21
    Marshall afirma: "[...] as classes pobres devem contribuir com percentagem menor de suas rendas do que as classes médias, e essas, novamente, com uma percentagem menor do que as classes mais ricas. Esse arranjo me parece eqüitativo no sentido mais amplo da palavra" (Marshall, apud Reisman, 1987, p. 154).
  • 22
    Marshall coloca: "Se pessoas não obtêm a ajuda quando elas realmente precisam, elas e suas crianças ficam aptas a se tornarem fracas em corpo e em caráter, e incapazes de contribuir significativamente para a produção material de riqueza; mas com certeza se tornarão muito mais degradadas se elas conseguirem com freqüência ajuda quando não precisam dela, e lentamente se acostumarem a se engajar para obtê-la" (Marshall, [1920], 1892, p. 186). A velha Lei dos Pobres teria sofrido deste último defeito e, para ele, a sua estupidez desastrosa "[...] foi talvez o perigo mais sério com o qual a Inglaterra jamais foi ameaçada [...]" (idem). Marshall afirma ainda que "[...] a irresponsabilidade bem intencionada da [velha] lei dos pobres fez ainda mais para reduzir a energia física e moral dos ingleses do que a irresponsabilidade desalmada [hard-hearted] da disciplina manufatureira [...]" (Marshall, [1920], 1982, p. 9).
  • 23
    No mesmo sentido, ver Keynes (1924, p. 630). Todavia a posição de Marshall sempre foi cautelosa, e ele fez questão de deixar isso claro: "Eu defendi apenas extensões 'cuidadosas, tentativas e lentas' do escopo do auxílio público, e assumi 'que homens com saúde [able bodied men] não deveriam, em circunstâncias normais, receber auxílio fora das casas de trabalho [out-relief ]'." (Marshall, 1892a, p. 373). Para um relato detalhado sobre as posições de Marshall em relação a essa questão, desde seus primeiros escritos sobre o assunto até a sua participação na Royal Comission on the Aged Poor, em 1893, ver Groenewegem (1995a, p. 353-360).
  • 24
    Reisman (1987, p. 214) aponta alguns termos, pouco simpáticos, que Marshall utiliza ao referir-se a esses indivíduos: "os casos ruins" [bad cases]; "os depravados" [vicious], os "indignos" [unworthy], "os habitualmente indolentes e perdulários" [idle and profligate], "os inconsequentes" [reckless], "o homem que pode trabalhar, mas não trabalha", o "vagabundo convicto" [the resolute tramp].
  • 25
    Segundo Groenewegen, para Marshall: "[s]olicitantes de auxílio sem reclusão em casas de trabalho [outdoor relief ] deveriam carregar o ônus da prova ao demonstrar que o mereceriam, ao mesmo tempo em que as decisões de conceder o auxílio deveriam ser apoiadas em testes tais como o teste de poupança [thrift test ]" (Groenewegen, 1995a, p. 354).
  • 26
    Ele diz que as Charity Organization Societies, já cumpriam em parte esse papel: "Eu proponho que eles continuem seu trabalho como corpos semi-oficiais; que sua autoridade e seus recursos deveriam ser aumentados ao receberem do governo um mandato definido para ajudar os Guardiões [da lei dos pobres]" (Marshall, 1892a: p. 378, 379). Reisman (1987, p. 212-215) apresenta o complexo sistema de classificação dos pobres proposto por Marshall que envolvia três categorias: 1) Classe A:os pobres merecedores - a quem a ajuda deveria ser dada de forma suave fora das casas de trabalho; 2) Classe B: os casos difíceis - não se deveria mandálos para casas de trabalho, mas a discussão deveria ser feita na hora de fornecer fundos públicos. Preferencialmente esses casos deveriam ser tratados pela Charity Organization Society. 3) Classe C: os pobres não merecedores - estes seriam abrigados em casas de trabalho e submetidos à disciplina muito severa e isso seria função do Estado.
  • 27
    Ele chama de "deprimente comédia" o fato de se excluir trabalhadores das comissões parlamentares sobre Auxilio aos Pobres (Marshall, 1892a, p. 374). Para ele, essas comissões deveriam incluir "[...] homens e mulheres que viram o funcionamento da lei dos pobres e da Charity Organization Societies desde baixo. Uma comissão para investigar se as pessoas são bem calçadas deve adicionar ao conselho de especialistas em fazer sapatos, pessoas que usam os sapatos e sabem onde eles beliscam." (Marshall, 1892a, p. 379). Ver também a esse respeito Marshall (1892b, p. 189).
  • 28
    "Quando os pais são incapazes de criar seus filhos adequadamente, o Estado deveria assumir o seu lugar [...] Para esse fim - escreve Marshall - dinheiro público tem que fluir livremente" (Caldari, 2004, p. 254). Como coloca Chase: "As crianças do 'Residuum' sofreriam por conta da privação de seus pais; capacidades latentes continuariam adormecidas e o 'Residuum' se perpetuaria. Nesse caso, portanto, Marshall advogava um papel potencial para o governo" (Chasse, 1984, p. 399).
  • 29
    Descrevendo a posição de Marshall, Aslanbeigui & Wick (1996, p. 10) colocam que a renda necessária seria partilhada entre os pais, o Estado e a caridade privada. Marshall considerava que a contribuição proveniente da sociedade civil, no que diz respeito à questão da pobreza, tenderia a aumentar na medida em que os ricos se aprimorassem e começassem a exercer em maior medida o cavalheirismo econômico (Marshall, [1907], 1966, p. 345).
  • 30
    No seu entender, a "[...] habilidade geral [dos indivíduos] depende largamente do ambiente da infância e juventude. Neste, a primeira, e de longe a mais importante, influência é aquela da mãe" (Marshall, [1920],1982, p. 172).
  • 31
    Groenewegen (1995a) relata que Marshall na sua juventude adotou uma visão progressista no que concernia ao papel da mulher, principalmente no que se refere ao ensino superior, mas, após sua passagem por Bristol, ele abandonou essa posição em prol de uma mais conservadora - por conta disso, o autor caracteriza Marshall como um " feminist manqué". Já como professor de Cambridge, Marshall fez campanha contra a atribuição de diplomas ou títulos às mulheres e combateu com afinco qualquer movimento em favor de aumentar o espaço delas ou de atribuir a elas um status similar ao dos homens (Groenewegen, 1995a, p. 501-506). Essas posições foram motivos de tensão entre ele e sua esposa, Mary Paley, - que não era uma mulher convencional. Mary estudou Filosofia Moral, deu aulas, mesmo depois de casada, de Economia Política (para um público essencialmente feminino) em Bristol e Cambridge - e tinha ideias bastante diferentes das do marido no que diz respeito à participação feminina na Universidade (Groenewegen, 1995a, p. 247-250). Para uma breve exposição sobre as posições de Marshall a respeito da educação feminina, ver Tullberg (2006, p. 528).
  • 32
    Segundo Pujol ([1984], 1966, p. 338), Marshall defendeu a importância de educar as mulheres basicamente como forma de capacitá-las melhor para essa tarefa de educar os filhos e administrar o lar.
  • 33
    Para Marshall, as faculdades humanas são "[...] um meio de produção como qualquer outro tipo de capital" (Marshall, [1920],1982, p. 191). Investir no homem levaria a um aumento na riqueza equivalente ao investimento em máquinas.
  • 34
    Para Marshall, a sociedade "[t]em o dever de garantir que nenhuma criança crescerá na ignorância [...] É abundantemente claro que se não forçarmos as crianças a freqüentarem a escola, não podemos possibilitar que multidões delas sejam capazes de escapar de uma vida de ignorância tão completa que elas certamente tornar-se-ão brutas e degradadas. [...] somente um conselho escolar [school-board] é capaz de salvar desta ruína aquelas crianças cujos pais são avessos à educação" (Marshall, 1873, p. 117).
  • 35
    A obrigatoriedade de frequentar a escola significava o controle do trabalho infantil. E, de fato, Marshall louvava os Atos Fabris que regulamentaram trabalho infantil (Reisman, 1987, p. 201).
  • 36 "[...] Não há extravagância mais prejudicial ao crescimento da riqueza material do que a negligência desperdiçadora que permite que gênios nascidos com ascendência humilde consumiremse em trabalhos humildes" (Marshall, [1920], 1982, p. 176).
  • 37
    Para Marshall: "[a]s crianças dos trabalhadores não-qualificados precisam ser tornadas capazes de obter os salários dos trabalhadores qualificados [...] A existência da nossa atual classe mais baixa [lower class] é quase inteiramente um mal [...] e as crianças uma vez nela nascidas, deveriam ser auxiliadas a deixá-la" (Marshall, 1982, p. 598). Como coloca Bowman: "Trabalho que se tornasse mais eficiente poderia então ser incluído no processo de produção a uma remuneração permanentemente mais elevada. Para Marshall, esse resultado tinha uma importância profunda [...]" (Bowman, 2004, p. 506).
  • 38
    Descrevendo as condições em Londres, Marshall coloca: "[...] residência por muitos anos no meio à fumaça, e com quase nada do puro prazer da luz do sol e de campos verdes, gradualmente rebaixa a constituição física [...] o Londrino puro-sangue [thoroughbred Londener] raramente é um trabalhador perfeito" (Marshall, [1884], 1966, p. 144). E ele de fato relata que "[...] existe um grande número de pessoas que com o físico deficiente e com pouca força de vontade, sem iniciativa, sem coragem, sem esperança, e com quase nenhum auto-respeito, que a miséria leva a trabalhar [em Londres] por salários inferiores ao que trabalho de mesma natureza recebe no campo" (Marshall, [1884], 1966, p. 144, 145). Amplas moradias, esperança e condições salubres de existência certamente eram consideradas elementos "necessários à eficiência" e sua ausência explicariam, em parte, a baixa eficiência do trabalho que vigorava entre esses trabalhadores.
  • 39
    Sobre a imigração para Londres, Mill afirma: "Destes imigrantes uma boa parte não faz bem para si ou para os outros ao virem para Londres, e não haveria nenhuma dificuldade [hardship] em desestimular que os piores deles venham, ao insistir em regras severas em relação a sua forma de vida lá" (Marshall, [1884], 1966, p. 147). Para Marshall: "A implantação abrangente de tais regras por si só iria [...] livrar Londres de sua população supérflua; só moraria lá quem é lá desejado [...] O sofrimento causado no caminho seria como nada quando comparado com o ganho final" (Marshall, [1884], 1966, p. 148).
  • 40
    "[...] a competição por seu trabalho iria forçar a Londres rica a pagar, como pode fazer, salários altos o suficiente para cobrir o custo de acomodações boas [...] (Marshall, [1884], 1966, p. 148).
  • 41
    Caldari (2006, p. 484) ressalta que, para Marshall, as mudanças precisariam ser feitas de forma gradual, já que a mudança na natureza humana é morosa, e para perdurarem as instituições precisam ser adequadas aos homens. Assim como coloca Bowman (2004, p. 499, 500): "[...] é em longos períodos de tempo que progressos econômico e social significativos poderiam ocorrer e que políticas poderiam ter efeitos benéficos em facilitá-los [...]".

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    Set 2012
  • Aceito
    Mar 2013
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